Paula Moura Pinheiro: "Gosto de fazer as coisas numa lógica de alta costura"

Aparece-nos em casa todas as segundas-feiras à noite na RTP2 com o seu programa <i>Visita Guiada</i>. Jornalista desde cedo ligada à cultura, descreve Portugal como mais civilizado do que os países nórdicos e defende que serviço público não pode ser uma "maçada". E quem pensa que esta mulher sempre foi boa aluna, que se desengane, até ao 9º ano era "péssima".
Publicado a
Atualizado a

Porque escolheu o Museu Nacional do Azulejo para me fazer esta visita guiada?

Em rigor escolhi o edifício que alberga o Museu Nacional do Azulejo, este Convento da Madre de Deus, que é das peças mais extraordinárias da arte portuguesa e menos conhecido do que seria expectável. A Igreja da Madre de Deus habita o imaginário dos portugueses. Mas pergunto--me quantos terão vindo aqui... A vista do Coro Alto ou os azulejos que estão nas paredes do edifício valem, por si só, a visita. Isto é um exemplo paradigmático do que se passa no nosso país. As pessoas são capazes de viajar até Paris, Roma ou Praga para verem património histórico, o que é ótimo, mas depois têm pouca disponibilidade para viajar cá dentro. Apesar de achar que já estamos melhor nesse aspeto.

Mas sente que há uma maior apetência dos portugueses por Portugal...

Agora sim, muito mais do que havia há dez ou 15 anos. Acho é que as coisas muitas vezes não estão bem comunicadas. E o meu trabalho também é esse, dar a ver, com informação qualificada e tentar aliciar as pessoas a deslocarem-se. Isto porque uma visita guiada em televisão pode funcionar como aperitivo, mas não substitui a experiência de uma visita ao vivo.

Este museu/convento é um dos seus locais preferidos. Que outros destacaria?

Tenho alguma dificuldade porque, felizmente, gosto imenso de Portugal. E não é por uma questão meramente afetiva. É que eu acho que Portugal é mesmo um caso muito interessante. Normalmente pensamos que o facto de estarmos longe daquilo que durante muito tempo foram os centros culturais, como Paris, resultou numa menoridade cultural para Portugal. Eu não leio assim. Eu olho para Portugal no contexto europeu como o Extremo Oeste, ou seja, o Far West da Europa, com todas as particularidades que isso arrasta. Dos Pirenéus para cá é um "caldo" à parte, singular. E ser "singular" é bom.

Então também inclui Espanha.

Sim, e dentro da Península Ibérica há várias nações, que também variam entre si. Mas a particularidade da "cena ibérica" tem que ver com a exposição a trocas, a comércios diferentes dos do Centro e Norte da Europa. Portugal, sendo um país Atlântico, tem um grande traço de cultura mediterrânica. Os portugueses são fantásticos "misturadores", misturam as coisas mais improváveis... E eu acho que também há nisso uma grande liberdade, uma grande inventiva.

Somos criativos, como agora está na moda dizer-se.

Exatamente. Nós temos essa capacidade.

E os portugueses têm sorte com o património que lhes chegou? Não temos grandes catedrais como França ou cidades de grande monumentalidade como Florença. Nem temos monumentos muito monumentais, com exceção de Mafra, Jerónimos...

É verdade. E para ser sincera esses dois nem são os que me interessam mais, sem desmerecer, claro. Mas vou dar-lhe um exemplo: a Sé de Braga. É um edifício absolutamente extraordinário. É românico puro? É gótico puro? Não. Tem vestígios sucessivos do românico, do gótico, do manuelino e uma presença esmagadora do barroco. O edifício da Sé de Braga é uma espécie de repositório, de mostruário das várias fases da história da arte portuguesa. O que distingue o nosso património não é a escala, não é a monumentalidade, não é sequer a riqueza. Mas há uma escala humana que o torna muito interessante, bem como esta apetência para misturar referências, para misturar coisas muito pouco ortodoxas. Há uma especificidade da arte portuguesa e do seu património histórico, que é muito rica à sua maneira. E, claro, também há pontualmente casos cuja dimensão é impressionante em qualquer parte do mundo, como o Convento de Cristo, em Tomar.

Que também conta a história da arte...

Exatamente. Começa com o castelo templário e com a charola, no século XII, e as construções sucedem-se até ao século XIX. Esta espécie de mestiçagem estilística é uma mais-valia no património cultural português.

Entretanto, Portugal passou a estar na moda e parece que o mundo inteiro resolveu de repente visitar-nos... Desde o Porto, o Douro, Lisboa, Alentejo, Algarve...

Mas ainda há muito a fazer. O Algarve é um bom exemplo disso... Para a maioria das pessoas, o Algarve é sol e praia, e isto é um problema grave de comunicação, porque há muito mais do que isso nessa região. O Algarve tem um património muitíssimo interessante, como Silves, que é linda, linda de morrer... desde a localização do castelo, a cor do castelo, toda aquela assinatura árabe, onde reconhecemos parentesco. Isso é muito comovente. Mas quando chegamos ao castelo não há ninguém que oriente as visitas, pelo menos não dei conta disso. Não basta conservar, é muito importante ter gente qualificada a receber os visitantes. E a quantidade de postos de trabalho que isto dava...

Mas como se pode explicar este súbito interesse de estrangeiros por Portugal?

É uma convergência de fatores. Beneficiámos dos problemas dos nossos concorrentes no mercado turístico, o Norte de África, a Grécia. Mas esse fator é circunstancial. Acho justo reconhecer que tem havido um importante esforço, sobretudo na última década, de divulgar Portugal. Depois há outros fatores. No caso de Lisboa, acho muito importante termos um aeroporto no centro da cidade. Para quem só tem um fim de semana para viajar, isso é uma mais-valia. Finalmente, um ponto que creio relevante: os povos que viajam estão a entrar numa fase de saturação de tudo o que é muito padronizado e Portugal consegue conservar ainda esta espécie de "autenticidade", com ótima gastronomia, com pessoas afáveis. É um lugar que ainda não transformou o turismo numa indústria demasiado massificada. Temos de ter cuidado para que isto não fique insuportável...

Que se transforme numa Disneylândia?

Exatamente. Lembro-me de ter entrevistado o André Jordan há muitos, muitos anos e de lhe ter perguntado, sendo ele polaco de origem, porque se fixou em Portugal. E ele respondeu: "Porque Portugal sem ser ainda um país muito de-senvolvido, é ainda um país civilizado." O que achei uma resposta muito inteligente. Civilizado no sentido em que a palavra ainda vale, em que as pessoas se sentam à mesa para comer e conversar. Isto é civilização. Tendemos a admirar a eficácia do Norte da Europa, mas eles comem sanduíches ao almoço e não se sentam à mesa, não têm relações familiares em rede como no Sul. A crise que estamos a viver aqui seria muito mais calamitosa no Norte da Europa.

Então concorda que a verdadeira Europa civilizada está no Sul e não no Norte.

Não tenho nenhuma dúvida sobre isso. As grandes civilizações nasceram na bacia do Mediterrâneo.

Então temos de ser mais orgulhosos de nós próprios.

Sobretudo de uma forma mais consequente. Andamos sempre a falar dos Descobrimentos... Claro que é uma aventura extraordinária sob todos os pontos de vista. Mas precisamos de mais visão e equilíbrio nas narrativas que produzimos sobre nós próprios, senão é apenas uma coisa saudosista... O José Eduardo Agualusa dizia-me há uns tempos uma coisa tão esperta: "Agora que já não somos um império é que Lisboa parece uma capital imperial." Isto pela mistura festiva de gentes. Uma pessoa anda em Lisboa, por exemplo no Chiado, e é maravilhoso. Eu imagino que no século XVI, no tempo de Camões, seria assim. O Hélder Macedo descreve o Camões enquanto jovem como sendo um rufia, que andava em bando a fazer patifarias no Bairro Alto, sempre à pancada... E na sua poesia Camões descreve o frenesi das ruas de Lisboa e fala de pessoas que andavam enlouquecidas com um "pó branco"... Não sei se era cocaína, mas era droga, evidentemente, que vinha nas naus. No século XVI, Lisboa era fervilhante e de um cosmopolitismo que depois se perdeu. Agora estamos, novamente, a viver isso, como diz o Agualusa, por causa das pessoas que vêm dos PALOP, do Brasil, da Ásia... do Leste da Europa. E tudo isto poderia ser mais bem aproveitado.

E a televisão? Tem claramente a obrigação de difundir toda esta riqueza cultural.

Pois...

Mas deve ser uma obrigação ou deve ser algo natural que se deve fazer por gosto?

Exato. Eu não gosto nada da palavra obrigação... O serviço público não devia ser uma chatice a que a estação pública está obrigada. Acho gravíssimo... e deixe-me sublinhar: acho gravíssimo quem o entende assim. Defendo que quem aceita dirigir a estação pública tem de ter a convicção de que prestar um serviço público através da rádio e da televisão é um privilégio e uma grande responsabilidade. [pausa a pensar] Vou dizer-lhe: ao contrário do que muitas pessoas podem pensar, eu não tenho nada contra o entretenimento ou contra, por exemplo, as telenovelas. Entendo, aliás, o consumo desproporcionado de telenovelas em Portugal: a maioria dos portugueses ganham mal, não são felizes no trabalho, sofrem com os transportes públicos e estão sob a pressão de uma crise brutal... Obviamente, quando chegam a casa, cansadas e frustradas, as pessoas querem cair para dentro de "outras vidas", querem projetar-se noutras pessoas.

Alienar-se...

Claro! Mas o entretenimento em televisão não só é legítimo como é necessário, e também na estação pública. O grande desafio é conseguir fazer uma programação que observe valores que se consideram maiores, como seja promover a coabitação pacífica, promover o conhecimento do nosso território, promover o conhecimento da nossa cultura, promover o conhecimento da nossa língua, promover o conhecimento do outro, promover o conhecimento das razões do outro. E eu espero tudo isto da estação pública de televisão, precisamente porque há demasiada oferta de alienação nos canais privados. Mas atenção, essa programação, a que chamo socialmente construtiva, tem de ser investida dos meios necessários, sob pena de continuarmos neste eterno equívoco: ninguém quer ver os ditos programas de serviço público porque são uma seca e são uma seca porque são feitos com o mínimo, sem o investimento de meios necessários para os tornar atraentes para o público. É um jogo muito inquinado.

Mas para isso é preciso dinheiro, coisa que tem faltado na RTP.

Mas a certa altura a questão que se põe é a seguinte: faz-se serviço público com o mínimo de meios que é possível só para dizer que se faz?

Então para si não tem sido feito o suficiente nos últimos anos...

É um facto que a RTP foi esvaziada de meios, aliás, como grande parte do País.

Mas é caro fazer um programa cultural?

A televisão é o meio de comunicação mais caro que existe e para fazer bem feito é preciso investir. Obviamente que podem fazer-se intermináveis conversas em estúdio e é barato. Até porque em Portugal não há o hábito de pagar aos convidados, o que, aliás, eu acho mal. Na maioria dos casos, os entrevistadores ou moderadores pertencem à empresa... Este tipo de programa não é de borla, mas é barato. Evidentemente, se se sair do estúdio é mais caro. Mas é completamente diferente eu estar sentada num estúdio a conversar sobre a relevância do nosso património cultural ou pegar numa equipa e ir com iluminação adequada filmar o Mosteiro de Tibães. Ainda assim, não me parece que o programa Visita Guiada seja um programa caro. Somos uma equipa pequena... Sou eu, a Sara Oliveira, dois câmaras e um assistente. Temos tido a máxima contenção de custos possível.

Apesar de ter imagens cinematográficas...

É feito com muito cuidado. Eu gosto de fazer as coisas numa lógica de alta-costura e não de pronto-a-vestir. E a alta-costura não requer um exército de gente, requer um ponto de vista diferente e requer um investimento grande na pré-produção.

Programas como o Visita Guiada parecem poder perdurar sem que fiquem datados.

São programas que correspondem nos livros a long-sellers. Há os best-sellers e há os long-sellers. Os primeiros chegam às livrarias e esmagam em vendas, mas a maioria das vezes têm uma vida curta, e os segundos podem não vender tanto no início mas vão sendo vendidos por muito tempo.

Ainda hoje os programas de José Hermano Saraiva, mesmo aqueles com 20 anos, são interessantíssimos de ver.

São maravilhosos! Até o facto de serem mais antigos tem graça. E continuam atualíssimos. É um bom exemplo de long-seller. Nunca fazem números espetaculares, mas perduram. E podem passar em qualquer lado, na RTP Memória, na RTP Internacional...

E na net...

No Visita Guiada, o programa é construído para que um estrangeiro entenda o que estamos a dizer se for traduzido. Eu tenho o cuidado de conceber de raiz o guião e nunca partir do princípio que quem o vê sabe do que estamos a falar.

Tem saudades do programa Câmara Clara?

Tenho saudades da equipa, que era fantástica. Há duas pessoas do Câmara Clara que trabalham comigo no Visita Guiada, a Sara Oliveira e o João Nuno Soares. Tenho saudades das pessoas, era mesmo uma equipa maravilhosa, profissionais extraordinários. Mas digo-lhe que estou também muito contente a fazer o Visita Guiada... Aliás, a ideia de fazer um programa com as características do Visita Guiada surgiu-me durante o Câmara Clara, porque a certa altura começámos a sair do estúdio e eu comecei a adorar sair do estúdio. Já eram muitos anos em estúdio. Agora adoro andar cá fora. Adorei ter feito o Câmara Clara e fiquei muito triste quando acabou, obviamente. Mas eu acho que o que começa também naturalmente acaba. E eu tenho muita dificuldade com o tom de escândalo, que se instala em Portugal com muita facilidade. Eu escandalizo-me com outro tipo de coisas. Não questiono a legitimidade de quem acabou com o programa, mas se me perguntar se acho que o programa estava esgotado, eu respondo que não. E durou quase seis anos, coisa que nunca esperei que acontecesse. E eu acho que é saudável que venham outras pessoas fazer as coisas, para renovar, mostrar outros pontos de vista...

E foi subdiretora da RTP2 entre 2006 e 2012.

Fui, durante seis anos.

De que mais se orgulha desse tempo e do que fez nesse cargo?

Orgulho-me do que a direção a que eu pertenci, que foi a direção do Jorge Wemans, fez pelo documentário em Portugal. Houve, durante anos, a possibilidade de se estrear um novo documentário nacional todas as semanas, o que é extraordinário. Esse foi, para mim, o maior contributo que a direção de Jorge Wemans deu ao audiovisual português. Mas fez-se outras coisas... A programação infantil foi um dos pratos fortes dessa direção, bem como a saudável interação com a chamada sociedade civil. Acho que conseguimos prestar verdadeiro serviço público. A direção a que eu pertenci tinha a convicção de que era possível cumprir o serviço público de uma forma criativa, inventiva e atrativa.

Mas saem a mal por causa da redução do orçamento para a RTP2...

A RTP2 foi sujeita a uma redução de orçamento de 80%.

E assim chegaram à conclusão de que não era possível fazer omeletas sem ovos...

Com certeza... Teria de falar com o Jorge Wemans sobre isso, mas ele achou que era impossível cumprir o mínimo daquilo a que estávamos obrigados e com o mínimo de qualidade com o dinheiro que tinha.

O caminho da RTP2 tem sido sinuoso ao longo da sua história, com várias guinadas...

Sim, tem tido algumas guinadas... Mas a RTP2 teve momentos grandiosos, e retiro desta avaliação a direção a que eu pertenci para não falar em causa própria. Digo isto como espectadora. Eu sou um produto da RTP2, para o bem e para o mal [risos]. Ou seja, eu aprendi a ver grande cinema na RTP e desde cedo na RTP2. Os grandes clássicos, grandes documentários, grandes séries, concertos... Eu aprendi muito através da televisão e através da RTP2. Quanto às oscilações a que se refere, acho que se devem naturalmente às diversas direções, o que também é legítimo... Nos últimos anos tem sido mais complicado pela absoluta falta de meios. E tenho a certeza de que é dificílimo fazer um canal aliciante com o orçamento atual da RTP2.

A RTP2 está condenada a fazer 2% ou 3% de share?

Não, a RTP2 não está condenada a baixas audiências. É uma questão de adequação de planos e de estratégia. Há que planificar de uma forma consequente e responsável. Sabe como se faz um programa dito cultural com audiência? Eu digo-lhe. É meter trailers de filmes blockbuster, depois mete-se um videoclip da Beyoncé e o último best-seller da literatura de cordel. Assim se comporia um programita dito cultural, com "cinema", tecnicamente falando, com "música", tecnicamente falando, e com "literatura", tecnicamente falando. É fácil, garanto-lhe que assim tem audiências. Mas do que é que estaríamos a falar? Estaríamos a falar de indústria de entretenimento, não de cultura, no sentido da criação e do pensamento. Uma coisa é termos programas que cobrem o pensamento e a criação, outra coisa é termos programas que têm notícias na área do entretenimento. Ambos são importantes, ambos têm de ter lugar. O que é grave é a confusão entre as duas coisas e a mistura sem critério.

Então é preferível que a RTP2 tenha uma baixa audiência, a rondar os 2%, mas que tenha uma coerência?

Eu acho que é possível fazer mais do que isso. E também acho que a questão da identidade é muito importante. E voltamos ao início da nossa conversa. Uma das mais-valias do nosso país é o carácter singular que tem, tão singular, tão carismático. E num canal de televisão é da maior importância a identidade. Dito isto, identidade não é sinónimo de inflexibilidade, não é sinónimo de cinzentismo, de falta de imaginação. É possível construir uma identidade para a RTP2, com critério, com qualidade e que abranja vários públicos. Eu acharia normal, por exemplo, que a RTP2 passasse mais grande cinema, daquele que não passa pela lógica comercial.

Na lógica do 5 Noites, 5 Filmes?

Por exemplo. Não é que essa tese tenha vingado durante a direção a que eu pertenci, mas eu sempre defendi isso. Os grandes cineastas deviam passar e seriam vistos. A televisão também serve para isso, para dar acesso às pessoas a coisas que o mercado esmaga. Os canais públicos existem para garantir uma coisa: pluralismo. Para garantir acesso ao que o mercado esmaga. O que não significa, e não me canso de dizer isto, que comunicar conhecimento, partilhar pensamento, dar a conhecer as criações que fizeram avançar a humanidade na área científica, na área das artes, na área da história, na área da política, seja sinónimo de maçada. E para não ser sinónimo de maçada é preciso dinheiro, algum dinheiro.

E há um bom canal de cultura no cabo?

É uma área do cabo que ainda pode ser explorada.

E há algo de bom que passe nas generalistas privadas?

Uma coisa é o trabalho da programação, que, enfim, acho francamente pobre: como pôr três telenovelas seguidas, por exemplo. Mas do ponto de vista da produção fico muito contente de ver a quantidade de ficção portuguesa que está a ser feita, mesmo que sejam em formatos mainstream como são as telenovelas. É muita gente que tem trabalho, é um know-how que estamos a desenvolver a uma velocidade magnífica. Não sou consumidora de telenovelas, mas no outro dia passei por uma e achei que estava bem feita, com ritmo, competente. E notei uma enorme diferença de há uns anos a esta parte. É uma nova indústria do audiovisual que se criou, e isso é ótimo.

E a informação?

A informação é um problema, mas é um problema em todos os canais de televisão e é um problema na imprensa. Porque está completamente desinvestida de meios e não há milagres... Não se manda os jornalistas fazerem reportagem. Ou manda-se, mas têm de ir e voltar no mesmo dia. Hoje estão a cobrir uma conferência de imprensa com o Jorge Jesus e amanhã estão à espera da ministra das Finanças... Não acredito em redações que não têm especialistas, que não têm jornalistas especializados. O mundo é demasiado complexo, e está mais complexo do que alguma vez esteve, para se produzir uma informação responsável sem jornalistas especializados, sem seniores nas redações, sem gente suficiente nas redações. E eu não estou a fazer a apologia do desperdício, estou a fazer a apologia da responsabilidade. A informação é um problema em todos os canais e não estou a referir-me a direções específicas, estou a referir-me às condições que as redações e os jornalistas não têm.

O tratamento jornalístico da área da cultura tem sido bem feito?

É uma luta desigual... A cultura não tem o espaço que eu gostaria que tivesse na informação generalista. Digamos que sobrevive em alguns projetos editoriais na imprensa, alguns de grande nível e qualidade, mas não tem o espaço que devia ter. Mas também lhe digo que não é um problema apenas de Portugal, é um problema global. Quando alguém diz "isto só em Portugal", eu respondo: "Calma lá, nós importámos os reality shows da Holanda." É bom não perdermos isto de vista, o tal "desenvolvido" Norte da Europa. Era bom que as pessoas fizessem zapping quando viajam e vissem o que é a televisão alemã, é muito pior do que a televisão portuguesa. Para não falar da televisão italiana, que chega ao hilariante. O que se vê no resto da Europa chega muitas vezes ao mais baixo nível. Infelizmente, o que se vai fazendo é transversal em todo o mundo, são tendências universais. Voltando a Portugal, tenho particular pena de que a área internacional, que é da maior relevância para compreendermos o funcionamento das coisas, seja uma das secções menos tratadas.

Outra área que precisa de meios caros...

Lá está... E outra coisa: o internacional não dá audiências. É uma coisa assustadora. Com o mundo a despencar, abrem-se noticiários com futebol. É o Estado Islâmico, é a Ucrânia, foi agora o referendo da Escócia... Só um destes tópicos é gravíssimo, quanto mais a convergência de todos eles ao mesmo tempo. E estamos a falar de futebol. Não tenho nada contra o futebol, mas há uma desproporção enorme. E aqui acho que é um problema português.

E a imprensa está condenada a um nicho de leitores, tendo em conta que a internet pode ser um eucalipto que seca tudo à sua volta?

A imprensa tem de se repensar. Parece-me evidente que qualquer jornal no momento em que está a ser impresso já está desatualizado. E sendo assim, o que é que eu espero do jornalismo em papel? Espero trabalhos de outro fôlego, desde logo porque é incómodo ler trabalhos de cinco ou seis páginas num ecrã de um smarthphone ou de um tablet. Parece-me evidente que as pessoas preferem ler em papel um trabalho grande.

Isso somos nós, mas quem tem hoje 20 e poucos anos muito dificilmente pega num jornal e prefere consumir tudo nos seus telemóveis, não procurando trabalhos de fundo, mas sim notícias curtas para ler rapidamente.

Sim... e as redações estão a transitar para o online. E não vejo que venha daí mal ao mundo. O que eu acho é que nisto de não se perder de vista o futuro mercado perdemos outra coisa muito importante: grande parte da população é mais velha. A longevidade tem aumentado, o que significa que temos aqui uma massa enorme de pessoas com mais idade que são um mercado muito importante. Nalguns casos terá menos poder de compra, noutros casos terá mais. Mas é um mercado com características diferentes do mercado dos mais novos. Acho que se tem de fazer uma leitura mais fina.

E acha que a internet pode destruir o consumo cultural? As idas ao teatro, ao cinema, a exposições...

Não tenho nada essa ideia.

São complementares.

Quando apareceram as cassetes VHS diziam que o cinema ia acabar e que as pessoas não iam mais ao cinema... Bem, agora está a acontecer, mas não acho que seja por causa da internet. E nunca se escreveu tanto, é verdade que muitas vezes mal escrito. Mas há 40 anos as pessoas nem sabiam ler, tínhamos uma taxa de analfabetismo infame. Ao menos agora escrevem: nem que seja só sms, cheios de K... Não sou nada purista nisso. Há sempre um livro adequado a cada pessoa. Se uma criança gosta de tubarões, vamos lá procurar um livro sobre tubarões, se uma menina gosta de histórias de namoricos, vamos lá encontrar um livro com esse tema. Desde que os livros não tenham erros ortográficos... O que eu desejo é que a oferta seja variada e exista para todos os públicos, para os menos e para os mais exigentes.

Viveu os tempos da fundação da SIC. Foram os anos mais excitantes para si em TV?

Foram tempos épicos e empolgantes. Fundar um canal é um privilégio. Eu tive imensa sorte, a minha geração teve imensa sorte. Não foi só mérito, foi uma conjugação de circunstâncias, como essa de terem surgido as privadas naquela altura. Mas pessoalmente não é o momento que recordo com mais prazer, porque eu tinha tanto medo... Custava-me tanto fazer televisão, sofria tanto.

Sofria assim tanto?

Horrivelmente...

Mas pela exposição da sua imagem?

Nunca foi uma coisa que eu tivesse escolhido fazer. Quando andei na Universidade Nova de Lisboa, em Comunicação Social, só três pessoas não se candidataram à RTP, que na altura era a única estação de televisão, e eu fui uma delas. Eu nunca quis fazer televisão.

Então como foi parar à SIC, a sua primeira experiência em televisão?

Porque fui convidada pela Maria Elisa.

Conte-me esse episódio.

Eu estava na Marie Claire, de que a Maria Elisa era diretora. Ela, que estava no projeto inicial da SIC, convidou-me e eu disse-lhe que morreria em frente a uma câmara. E a Maria Elisa disse--me uma coisa que nunca esqueci: "Eu acho que você tem de experimentar e se depois não gostar tudo bem. Mas tem de experimentar, porque caso contrário vai ficar para sempre com essa dúvida. Não se pode deixar de experimentar uma coisa por causa do medo." Foi um excelente conselho e devo-lhe isso. Ela insistiu e eu experimentei. E na SIC acharam piada ao meu registo e imagem. Decidi disciplinar-me e controlar o pavor que tinha das câmaras.

E nesses tempos contactou com Emídio Rangel.

Sim, depois a Maria Elisa saiu do projeto ainda antes do lançamento da SIC e o Emídio Rangel assumiu o comando do canal e reiterou o convite, com base nos testes que eu tinha feito.

Que memórias guarda dele?

Ao contrário de 90% das pessoas da SIC dessa altura, eu nunca tratei o Emídio Rangel por tu. Sempre tivemos uma relação relativamente formal. É preciso não esquecer que eu nunca pertenci ao quadro da SIC, eu fui uma colaboradora, eu não estava na redação. A ideia que tenho dele é a de um homem muito criativo e sobretudo um grande mobilizador de equipas. Era um grande capitão, com uma grande intuição e com uma grande audácia. E uma pessoa com quem tive uns problemas depois, com um processo em tribunal. Pus um processo, não a ele pessoalmente, à SIC, mas ele é que foi o responsável [a SIC Gold, retransmitiu, sem autorização de Paula Moura Pinheiro, o programa Sexo Forte, de que era autora, editora e apresentadora. O tribunal, em 2002, deu razão a Paula Moura Pinheiro e a SIC foi obrigada a pagar 6400 euros acrescidos de juros de mora referentes a direitos de autor] e ganhei o processo. Isto para dizer que nunca tivemos uma relação próxima. Mas era indiscutivelmente um homem talentoso, com visão. Faço três programas na SIC, entre eles o Sexo Forte, que é o mais icónico, e posso dizer que fiz o que queria, tive toda a liberdade e devo isso a Rangel e aos anos que estávamos a viver. Era uma época em que se podia experimentar coisas.

E por falar em sexo forte... 35 anos depois de termos tido Maria de Lourdes Pintasilgo como primeira-ministra, Portugal não voltou a ter outra mulher nesse cargo.

Então não temos? Temos uma ministra da Finanças que é o membro do Governo mais poderoso em ex aequo com o primeiro-ministro...

Mas não tem o mesmo simbolismo. Acha que um dia...

Com certeza que sim. Eu espero é que isso um dia deixe de ser um tema, o género sexual de um candidato a primeiro-ministro. No dia em que nós não observarmos se o candidato é homem ou mulher, é porque essa questão ficou resolvida. E o mesmo digo em relação à orientação sexual, à raça ou à religião.

Como se decidiu pelo curso de Comunicação Social?

Olhe... calhou. Nunca foi um sonho ou um projeto. Eu ia para Direito. Sempre fui muito argumentativa. Eu própria estava convencida de que ia para Direito e à última hora inscrevi-me naquilo, que pedia uma média bem mais alta. A minha mãe, que era jurista, ficou furiosa! Ia-me matando! Curiosamente, anos mais tarde, fiz uma pós-graduação em Direito.

Fez a vontade à mãe...

Não... é porque é uma área que me interessa mesmo, gosto.

Então nunca viu o jornalismo como uma missão, quase heroica...

Não... Eu sou é uma jornalista com muita convicção. É uma profissão, uma função da maior importância e que deveria envolver sempre a máxima responsabilidade. Eu vejo o jornalista como alguém que narra e que traduz. E esta função arrasta uma enorme responsabilidade, de lealdade, o que passa por cumprir os métodos, cruzar as fontes. Tudo coisas que estão em risco, por causa da falta de condições que os jornalistas hoje têm para trabalhar. E vejo o jornalismo como um privilégio, eu nunca teria conhecido as pessoas maravilhosas que conheci se não fosse jornalista. Ser jornalista é um passaporte para poder falar com pessoas inspiradoras.

Como era a sua vida nos tempos da faculdade?

Divertida.

Quais eram os seus interesses?

Eu já era uma chata [risos]. Mas sou uma chata que gosta muito de se rir e de se divertir. E de comer e de dançar e de festas e de copos.

Mas ia à Cinemateca...

Ia, ia... Vi de tudo! Ia a sessões contínuas... Nouvelle vague, cinema novo português, os neorrealistas italianos, os grandes realizadores da história do cinema... tudo! Mas como lhe disse há pouco, eu comecei a ver cinema antes, na televisão, na RTP2. E tive a influência do meu avô Henrique Moura Pinheiro, muito relevante para mim. Ele era um grande leitor e muito atento a estas coisas. E eu era muito curiosa.

Era boa aluna?

Era péssima.

A sério?!

Sim, só comecei a ser uma aluna interessada e razoável a partir do 9º ano. Eu estava sempre a pensar noutra coisa qualquer, era muito indisciplinada, dispersava--me. E não, não comecei por ler os filósofos gregos, comecei por livros de cowboys, Os Cinco... E por isso eu tenho uma relação com estas coisas ditas culturais muito íntima e prazenteira. E não é cerimoniosa. Fazer cerimónia com a cultura é matar a cultura.

E considera-se uma mulher de esquerda?

Sim... no sentido lato. Sou uma social-democrata no sentido em que diz o Tony Judt, ou seja, em Portugal corresponderia a um PS... deixe ver...

A um PS nórdico, escandinavo?

Exatamente! É exatamente isso.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt